Compartilharei aqui nO Mirante um texto que publiquei há alguns dias no EOMEAB. Espero que a leitura lhes seja interessante!
O que é tristeza ou alegria para o animal? Segundo a propensão genética, o instinto, a criatura irracional está satisfeita se puder se reproduzir, alimentar, proteger e, dependendo da espécie, trabalhar em bando, o que está incluído em "alimentar e proteger". O animal jamais ficará angustiado se tiver tudo isso - e se algo lhe faltar, será o seu estômago que falará mais alto, não a sua mente. O animal também não pode encontrar satisfação para além do suprir dessas necessidades, já que ele não sabe apreciar o mundo e a maior parte deles não possui memória para associar adequadamente as informações. Existem exceções gritantes onde o homem exerce maior influência, seja na criação de raças novas (como os cães) ou seja no treinamento, que sempre vem acompanhado da recompensa - e você dificilmente conseguirá levar um cão a desenvolver algo que esteja além de suas habilidades naturais, pois pegar o disco e saltar são comportamentos associados à caça que, nesse caso, é obtida com a recompensa (alimento ou aproximação do "líder do bando", que é o seu dono) e o condicionamento (ele ganha a recompensa até se acostumar e depois prosseguir praticando sem a dependência dela). O adestramento, no final das contas, é mais uma questão de hierarquia, advinda das matilhas, do que de parceria. No mais, você dificilmente verá um animal se preocupando com a beleza, admirando um movimento, refletindo sobre a vida - tudo isso depende da razão. O homem é racional, e mais.
Nesse sentido, o homem é mais selvagem do que o animal. Um cão é como uma máquina: qualquer um de qualquer tipo pode ser controlado, adestrado, satisfeito, se a "senha" for "digitada" adequadamente, se a via para o suprir de seus instintos mais básicos for satisfatoriamente percorrida. E ele vai te "amar" por ser a sua fonte de sobrevivência, o seu bando. Com o homem isso não acontece, pelo menos não plenamente. O homem pode, sim, ser doutrinado e condicionado em dados níveis (existem recursos de controle mental, hipnose e manipulação eficazes) mas nenhuma forma de controle possui efeito total e universal. De qualquer modo, em estado natural, o homem, que é racional, quase sempre será um questionador, um reclamão, um pensador. Aquele que nasceu escravo, mesmo sem ter tido liberdade, pela mera observação e admiração das aves poderá desejar ser solto dos grilhões. O homem é um ser difícil de prender e poucos são adestráveis: no mais cruel e longo regime, sempre haverá uma rebelião e, onde não houver rebelião, sempre haverá uma imensa maioria que racionalmente escolhe dançar conforme a música, para evitar a morte - note que aqui a submissão não existe necessariamente por condicionamento, mas por livre escolha. Esse era aquele indivíduo da Alemanha Oriental que sempre olhava pro Muro de Berlim e desejava o outro lado, mas evitava pular pra lá por causa dos riscos - e pela festa que se deu no dia da derrubada desse mundo, sabemos que a absoluta maioria pensava exatamente da mesma forma. Ocorre que o homem é mais do que instinto: ele pode estar satisfeito mesmo que viva sem os recursos mais básicos para a sobrevivência e pode estar insatisfeito mesmo que tenha todos esses recursos em abundância. Ele é mais que animal. Receber ou deixar de receber coisas não influencia necessariamente em sua disposição interior. O homem sabe admirar a beleza, o som, a cor, o movimento e o cheiro para além do instinto - ele reflete! Ele deixa a natureza penetrar em sua mente de uma forma muito mais completa que os animais. Ou o cão sente prazer com o cheiro da chuva caindo sobre a terra? Se não for cheiro de comida ou do líder do bando (e outros membros), é improvável que sinta algo... *Leia a observação ao final do texto.
Aquilo que definimos como "felicidade" e "infelicidade", embora possa ter ligação, está além do instinto, da mera sobrevivência. Ao meu ver, tais questões, que nos definem quase tanto quanto os aspectos físicos de nossa natureza, são evidências da existência de Deus - irei explicar o meu ponto no restante do texto. É fato que a admiração e muitos desejos estão ligados ao simples fato de sermos racionais e, portanto, pensarmos sobre a vida, mas a própria razão tem um limite: o limite do razoável, é óbvio. A razão, nesse sentido, por si só não nos coloca muito acima dos animais, pois assim como eles ficam satisfeitos quando supridos em suas necessidades básicas, a mente racional também deveria se acomodar com aquilo que é razoável para a sobrevivência. É claro que o racional é questionador e apreciador, mas racionalmente falando não parece sábio se enveredar em questões sem fim, que apenas sugarão nossas energias, enquanto é racionalmente aceitável satisfazer-se com as necessidades supridas. É para isso que a maioria das pessoas hoje usa a razão: desenvolver atividades profissionais somente na medida suficiente para garantir a recompensa que, por fim, servirá para adquirir os recursos básicos para a sobrevivência e alguns outros luxos. A razão, por si só, deveria inibir o desconforto desnecessário, a tristeza sem fundamento lógico, o desespero que independe do suprir pleno das necessidades de sobrevivência. A razão, por si só, deveria ser apenas mais um recursos para sobreviver, não uma complicação - em termos imediatos, de validade individual, os sentimentos não são caminhos necessários para a manutenção da vida. Pelo contrário. Nós temos algo para além da razão, que nos torna mais humanos do que a razão por si só é capaz de fazer. Somos mais do que animais inteligentes, do que robôs mais eficazes.
Com base no que foi dito acima, consigo concluir que a razão, embora possibilite a admiração, é insuficiente se estiver desacompanhada: a mente puramente racional não admira verdadeiramente, não vê poesia, apenas explora, com intuitos práticos, aquilo que se propõe a analisar, não se detendo em questões existenciais, mas somente averiguando aquilo que é útil para a vida. Para haver admiração, para haver poesia, é necessário haver sentimento. O sentimento é a coisa mais desnecessária de todo o mundo natural, mais antinatural, ou sobrenatural, que podemos conceber com facilidade. Nesse exato momento é justamente o sentimento, e não a pura razão, que te faz prosseguir e admirar ou repudiar essa leitura - pela pura razão você estaria mais preocupado com questões mais empíricas e direta e imediatamente úteis para a sobrevivência. É o sentimento que te prende a qualquer coisa que esteja além da necessidade imediata: você pode se deleitar numa leitura como essa porque sente algo bom com relação ao Criador, ou você pode estar se armando na defensiva, porque a ideia de Deus lhe desagrada profundamente. Mas você só é capaz de sentir algo com relação ao que não é tão diretamente necessário para a sobrevivência porque pensa. O homem sente. O homem é capaz de fazer um poema ao analisar um botão de flor, de escrever um romance baseado numa tempestade. O homem, por ter sentimento e razão, é o único ser criado capaz de admirar e descrever a natureza, de lhe dar sentido. E nada disso é necessário, falando nos termos básicos da sobrevivência. Não é necessário, mas sem isso absolutamente nada teria graça, nada seria belo.
Nossa natureza é tão singular que somos capazes, inclusive, de admirar a tristeza, de refletir sobre ela, de fazer poesia, pintura e narrativa sobre o maléfico. É a tristeza e a alegria que nos fazem escrever, filosofar, pintar, desenhar, esculpir, cantar, contemplar. Desgastar-se num trabalho colossal, como a Catedral de Notre-Dame, é algo que vai além do racional - exige sentimento! O racional iria se contentar com um simples espaço coberto. Na verdade, a própria existência da catedral não seria possível. O homem quer entender de onde veio e para onde vai porque possui um sentimento de necessidade com relação a isso, uma "necessidade do tipo desnecessária", se analisarmos a forma como os demais seres vivem muito bem sem depender disso. Mas para nós o desnecessário se tornou necessário, porque, mesmo sem precisarmos disso para nossa imediata sobrevivência, sem isso sentiremos uma irracional agonia que prejudicará o andamento de todas as demais coisas. Só existem grossos livros, obras de arte, músicas e demais coisas "desnecessárias" porque nos são sobrenaturalmente "necessárias". E é por isso que disse que não existiram locais de culto sem fôssemos apenas racionais: compreender a existência de um Deus Criador por mera observação racional é possível, mas desejar conhecê-Lo, estudá-Lo e relacionar-Se com Ele é uma questão de sentimento - sentimento esse que só existe porque Ele existe, uma vez que não possui nenhuma fonte observável no mundo natural. Só temos como necessidade o desnecessário para a sobrevivência natural porque alguém de fora da natureza nos está chamando.
É o sentimento, a alma, que define a personalidade. Se Deus nos criou como algo mais do que robôs, como seres admiradores da Sua Criação e relacionáveis, necessariamente incutiu em nós os sentimentos - e é por culpa dos sentimentos, e não da razão pura, que o homem decidiu se afastar do Criador. Entendamos isso: se nós nos sentimos angustiados mesmo tendo todo o materialmente necessário ou nos sentimos consideravelmente felizes mesmo faltando o mais básico, então há algo no homem que destoa de toda a lógica desse mundo e se há algo no homem que é ilógico, se comparado com a lógica natural, então ele há de ter uma fonte para além da natureza. Alguém poderia dizer que "se é ilógico é inferior ao lógico e, portanto, é apenas subtração do mundo natural", mas nesse caso o ilógico é superior ao lógico, trazendo no pacote toda uma gama de inovações: somos capazes de admirar, de produzir arte, de aproveitar essa vida com base nele. É interessante notar que na postagem "A Existência de Deus" afirmei que a existência do lógico e racional é prova da existência de Deus enquanto, nesse caso, estou afirmando que até mesmo o ilógico pode ser uma prova da Sua existência. No final das contas, tudo culmina no texto "Deus Existe": tudo e qualquer coisa que existe prova que Deus existe. Num certo sentido, a própria existência de sentimentos em nós é prova de que Deus existe nos deu todas as condições de reencontrá-Lo: a análise racional pode ajudar na busca, mas o sentimento nos dá o desejo e a possibilidade de um relacionamento. Se nós reconhecemos que existe um bem a ser procurado, um Bem Pleno, para além do instinto imediato, então Deus existe - leia mais na publicação "O Perfeito Precisa Existir, Parte 1".
Ora, se existe felicidade para além do mundo natural, já que existe tristeza mesmo quando tudo está no devido lugar, então existe Deus. Se o homem não se satisfaz com dependência estrita de seus recursos e é capaz de admirar esse mundo e refletir sobre a questões mais "inúteis" e profundas, então fica evidente que ele não foi aqui colocado apenas como mais um "sobrevivente". A função primordial do homem, segundo a sua natureza, não é apenas sobreviver, pois se assim fosse, com o aumento dos confortos e segurança, não teríamos também um aumento no número de casos de depressão. O homem existe para definir o que é "existência", o homem existe para definir o belo, o louvável, o admirável. O homem é a memória do universo e toda a sua beleza reside apenas em sua mente. A beleza do universo não está no universo, está no homem, que observa a matéria inerte e/ou irracional e consegue ver beleza nela. O homem é a beleza do universo! Essa, portanto, parece ser a nossa função primordial em meio ao mundo natural - fazer as coisas existirem, porque se não fosse pela emoção e razão humanas, não haveria nenhuma criatura com consciência de sua existência e nenhuma criatura capaz de servir de consciência para a existência das outras. No homem reside a consciência da existência do humano e do inumano - o homem é a consciência do universo. Isso tudo é muito mais do que só sobreviver, isso tudo é muito mais do que natural... nós temos raízes para além daquilo que nossos olhos podem ver. O definidor não pode vir daquilo que define, a consciência não pode vir a inconsciência, a razão não pode vir do irracional - é como sugerir que o engenheiro tenha vindo do robô e não o contrário. Não estou dizendo que o homem criou o universo, mas estou dizendo que, assim como o engenheiro é a existência, a razão e a consciência do robô, o homem é a existência, a razão e a consciência do universo - é o homem que entende o universo e não o universo que entende o homem. O universo apenas o aceita, involuntariamente - e, curiosamente, o homem não o aceita como ele atualmente é.
Se temos um impulso além do instintivo, mas igualmente irracional, que nos direciona para algo que está fora do necessário, então parece que conhecemos e admiramos o sabor de algo que já não mais existe nessa natureza, mas que desejamos das profundezas da alma, do espírito e dos genes. Desejamos a imortalidade, desejamos o Paraíso, desejamos a exuberância desnecessária de suprimentos, desejamos o entretenimento pleno, desejamos um mundo que não existe mas que, por desejamos, deve ter existido algum dia. Ninguém que tenha nascido na caverna e nunca saído deseja conhecer o mundo exterior se não for estimulado e se o mundo exterior não existir - nós só desejamos aquilo para o qual fomos estimulados, aquilo que existe, aquilo que, de alguma forma, conhecemos. Como já constatado, não fomos projetados para encontrar nossa plenitude nesse mundo conforme os demais seres, nossa alegria e tristeza têm raízes noutra dimensão e noutro período. Sendo assim, é bastante provável que a ideia, presente nas memórias mais antigas de muitos povos, de que nossas origens se deram na plenitude de Deus e de um exuberante Jardim, tenham fundamentos históricos - e é por isso que olhamos para o passado com uma admiração diferenciada, como que se procurássemos algo que perdemos, enquanto olhamos para o futuro ou com esperança de que reencontraremos o Paraíso ou com desespero, desespero que se origina do desânimo para com o reencontro daquilo que já fomos e que desejamos voltar a ser. Encontramos felicidade, ou parte dela, naquilo que consideramos bom (e encontramos o "bom" naquilo que consideramos "felicidade"), de modo que, havendo um "bom", há de existir o Pleno Bem e, por conclusão, havendo felicidade em algum nível, há de existir a Plena Felicidade. Nos dois casos, que são indissociáveis, temos a compreensão de Perfeição e, portanto, de Deus.
Deus está no menor elemento, Deus está no menor pensamento, Deus está na mais elementar concepção de "bom" e Deus está no mais fundamental sentimento. Ninguém pode fugir dEle. Se o inimigo do Criador milita contra a Sua existência porque procura um mundo melhor, porque deseja apresentar ao homem uma mais verdadeira "felicidade", então ele procura destruir o Eterno expressando pensamentos que são resultado direto da Sua existência (não as ideias pensadas, mas o próprio ato de pensar). Qualquer militância apaixonada, qualquer admiração, qualquer debate para além das vias da razão pura e da sobrevivência, é indicação de que só esse mundo não nos satisfaz e de que, portanto, viemos doutra realidade e estamos voltando para ela. Assim como foi o sentimento que afastou Adão e Eva de Deus é ele que, embora aproxime muitos do Criador, mantém outros tantos afastados - as pessoas que criam rodeios filosóficos, tentando burlar as realidades evidentes e os clamores da própria alma, baseiam-se mais no que sentem e querem do que naquilo que está descarado em todo o universo. Se você está sentindo algo ao terminar esse texto, reflita e, se você está refletindo, pense nas raízes do teu desejo de refletir e do sentimento que acompanha tal reflexão. Pense: quem, senão a Consciência Plena, poderia dar origem ao consciente? Quem, senão a Plena Razão, poderia originar o racional? O irracional e o inconsciente? Obviamente não (a morte não produz a vida e o Nada não produz o Tudo). Deus existe e Ele é provado por nossa compreensão moral, emocional e racional, conforme vislumbramos neste e nos artigos seguintes: O Perfeito Precisa Existir, Parte 1; A Existência de Deus e Deus Existe.
*Observação (2 primeiros parágrafos): não anulo o fato de que os animais possuem alguma forma de psicologia, o que quero dizer é que, ao contrário do ser humano, os seres irracionais, quando plenamente supridos em suas necessidades básicas, não desejam mais nada (reforço que a influência humana pode alterar a configuração original dessas criaturas). O restante da leitura esclareceu melhor tal questão.
Natanael Pedro Castoldi
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